"Posso não concordar com uma só palavra do que dizes,
mas defenderei até a morte teu direito de dizê-las."
- Voltaire

sexta-feira, agosto 19

Intervalo aberto

Escrito por Xico Sá
14/08/2011 - Folha.com - Blogs


O dia que meu pai contou como tinha me feito



Meu pai um dia me contou sobre o momento que tinha me feito. Ai nessa pradaria que vemos.

Meu pai me disse, filho, te fiz em cima de uns sacos de milho, em um ano muito chovido no Nordeste, fartura.

Meu pai igualmente Francisco.

Francisco Nildemar de Menezes, FNM na sigla de nome sobrenome, como todos os irmãos dele.

FNM de fenemê, a marca de um antigo caminhão brasileiro, dai todos os meninos da casa ganharam essa sigla: Francisco Naidson de Menezes, Francisca Neuzanir de Menezes, Francisco Nelson de Menezes, Francisca Neide de Menezes e todos os outros depois.

Todos viriam a ser fenemês na vida besta.

Muito tempo depois, chego eu, mas nunca perguntei como havia sido concebido.

Mas foi lindo quando meu pai me disse. Dia desses. Temos tido longas e bonitas conversas.

Na cachaça que tomei com o velho, contou tudo, me diga.

Meu filho, tua mãe tão linda, pense no sorriso, havia suado o ano todo, plantado, roçado, naquele ano gastei meus braços, meu juízo, mas você veio ao mundo.

Meu pai me disse.

E quando você veio ao mundo, meu filho, era como se o mundo recomeçasse de novo.

Choveu.

Os açudes sangraram.

Eu lembrei, meu filho, das coxas da tua mãe me dando, perdão, eu lembrei da tua mãe me dando o presente de tu, você, tu desembrulhado, roxinho ao ver o azulzão do desamparo da existência, aqui na serra.

E tomamos uma cana grande.

Ai meu pai me disse mais e pegou na minha mão direita: vamos a um lugar adonde te banhei pela primeira vez, que um dia foi cachoeira. Bora.

Cachoeirinha do sítio Tabuleiro, Santana do Cariri, foi aqui, meu menino, ano de tanta chuva.

Depois nosso primeiro banho ao relento. Na tempestade. Minha primeira ideia de água no deserto.

Água, meu primeiro brinquedo, lágrimas que vinham de fora para dentro.

Meu pai a dizer:

-Filho, essa é a chuva!

Eu calado, alumbrado, abestalhado, como se dissesse, caladinho de tudo:

-Muito prazer, lagriminhas de Deus!

Um marzão de histórias do semi-árido, me mostrando coisas. Um dia tudo isso não será teu, meu filho, eu sei, meu velho, as coisas aqui já nasceram com donos eternos.”


aqui: xicosa.folha.blog.uol.com.br/arch2011-08-14_2011-08-20.html#2011_08-14_17_50_02-161644940-0

Um comentário:

Anônimo disse...

Que lindo TAngar!